segunda-feira, 1 de agosto de 2022

O VALOR DE UMA AMIZADE VERDADEIRA

 

Dom Gilvan Francisco dos Santos, O.S.B

(Monge Beneditino)

Salvador, Bahia – 1º de agosto de 2022


Uma Amizade verdadeira não tem preço. Pois, um bom e verdadeiro Amigo é um tesouro incalculável. (Dom Gilvan Francisco, O.S.B).

 

Em oferecer uma pequena flor, num toque, num olhar, numa simples palavra, podemos muito bem perceber o grau de carinho ou de amizade do outro ser. (Dom Gilvan Francisco dos Santos, O.S.B).

N o nosso mundo atual com a Era Digital e a globalização, muitos conceitos importantíssimos à vida humana enfraqueceram ou se tornaram obsoletos ou até mesmo se perderam. Por isso, devemos de vez em quando voltarmos a analisar estes conceitos relativos a nossa sobrevivência na terra. A Amizade é um desses. Fala-se muito de amizade, mas nem todos sabem o que é verdadeiramente uma Amizade verdadeira.


O assunto sobre a Amizade é muito vasto. Aqui ponho algumas partes da minha tese do curso de Licenciatura em Filosofia – 2009-2011, que teve como tema: AMIZADE E FELICIDADE SEGUNDO ARISTÓTELES. Desejando contribuir um pouco no esclarecimento desse conceito tão importante para a nossa sociedade. Falarei também não só na parte filosófica, mas também pincelarei num cunho teológico, porém muito resumido devido a vastidão do assunto. Aos interessados, poderão se aprofundar na linha desejada. Aristóteles na sua obra Ética a Nicômaco, escreveu dois livros nos quais ele discorre sobre a natureza da Amizade. São eles: Os livros VIII e IX.


Entre milhares de textos que foram escritos pelos séculos, de uma multidão de frases e demonstrações de afetos de todos os tipos, os quais as pessoas constantemente dirigem uma para com as outras, deixo aqui uma pequena contribuição para os meus leitores, nesse pequeno e simples texto, alguns conceitos sobre este assunto, que muito aprecio. Isto é, a AMIZADE VERDADEIRA e o seu valor no convívio social. Pois, a Amizade verdadeira para mim é uma das coisas mais importantes e sérias e creio que também para a vida de todos aqueles que se encontram em sociedade. A Amizade verdadeira é reciprocidade; e nela não pode haver nenhum vício que possa prejudicar o outro a quem se dirige o seu respeito, amor, afeto e outros bens que sustentam esse vínculo amistoso entre duas pessoas. Pois, só assim, ela se sustentará e não se acabará.


Chamar a outro de amigo, isso não quer dizer que sejam verdadeiros amigos. O coleguismo ou o companheirismo pode estar na relação de Amizade, mas apenas essas relações não se configura numa Amizade verdadeira. Tem uma frase que diz: Tenho muitos conhecidos, mas poucos Amigos.” Isso é a pura verdade. Não confundamos a Amizade com formas de companheirismos ou coleguismos. Pois, ela está muito além dessas formas de relação.


A plataforma do Facebook, sabendo bem das vantagens e o valor do conceito de amizade, colocou nesta o termo amigo, para que com isso tivesse mais resultados de aceitação e procura entre as pessoas nas suas contas. Porém, o conceito de uma Amizade verdadeira ficou muito prejudicado, porque as pessoas não veem mais o sentido verdadeiro de uma amizade em sua origem, seja ela filosófica ou teológica, e por causa desse, e outros fatores sociais, ela tornou-se uma coisa comum e desgastada. Digo sempre que a Amizade nunca foi e jamais será uma coisa comum. Se estudarmos os antigos veremos bem como eles falaram e trataram o conceito de Amizade, seja entre os seres humanos ou os animais. Para mostrar um pouco sobre isso, darei pinceladas com algumas passagens filosóficas e teológicas, para assim tentar esclarecer um pouco o valor de uma Amizade verdadeira.


Pois bem! Certo dia discorrendo vários assuntos durante uma discussão, o grande filósofo Aristóteles (*385 a.C +322 a.C) se vê obrigado a falar sobre a Amizade. Seria esta uma virtude? Ou implicaria uma virtude? Para o homem grego, a virtude é um valor moral recebido na sua formação como cidadão da Polis. A Amizade está relacionada à existência em toda a sua dimensão racional e irracional, a saber: do ser humano e dos animais, visto que, sem amigos todos os outros bens humanos e, materiais, possuído pelos indivíduos não promoveriam ou proporcionariam satisfação.


Logo, Aristóteles aponta a Amizade como uma necessidade intrínseca ligada à vida, às realidades humanas. Porque, sem amigos ninguém escolheria viver, ainda que possuísse todos os outros bens.” (Ética a Nicômaco, VIII 1, 1155a; p. 379).


O que podemos observar é que os conceitos de Amizade e Felicidade estão por vezes correlacionados seja na linha direta aristotélica, a saber, seus escritos sobre o assunto, discursos e aforismos, seja na dos outros expoentes deste conceito, tais como Platão, Sócrates, Sêneca, etc.


Se dissermos que a Amizade passa através da relação entre pessoas que se amam e se respeitam mutuamente, a Felicidade é conseqüência também gerada a partir mesmo dessa experiência do outro. Para Aristóteles tudo o que se busca é encontrado de certa maneira. Você busca para si uma Amizade que te fará feliz e que contribua de alguma maneira te acrescentando algo mais. Não se busca a si mesmo no outro, nem se procura tirar proveito do que o outro tem de bom, mas tudo acontece como que por relação e participação, por antonomásia. Nós nos completamos de certa maneira e enxergarmos o amigo como um espelho de nós mesmos.


O conceito que sempre segui é o do filósofo Aristóteles. A meu ver este é o conceito mais belo de Amizade que também está ligado ao conceito da Felicidade. O filósofo nos diz que só existe Amizade entre iguais e suas espécies. Para ele existem várias formas de amizade, porém estas são pautadas em três tipos. Espécies desiguais são espécies diferentes, o que Aristóteles, quer dizer, é, para que a amizade seja igual é preciso haver semelhança com a espécie. Espécies iguais, a saber, os homens entre si e os animais com os da sua raça e espécie.


As espécies se atraem diz o filósofo. Ou seja, se esta é uma afinidade, logo as pessoas boas estão propensas a buscar amigos bons, ou melhor, buscar nos seus semelhantes algo que elas possuem em si mesmas. Aristóteles nos mostra nos seus aforismos que “igual com igual” ou os “semelhantes se atraem”. “Semelhante busca o semelhante”. O filósofo descreve três tipos de amizade. São elas: 1) A de utilidade, (ÚTIL). 2) A boa, (VERDADEIRA). 3) A AGRADÁVEL ou PRAZEROSA. No entanto, na Amizade verdadeira está também a utilidade, o agradável e o prazer.


Por fim, a Amizade é verdadeira quando é desinteressada. E o grupo dos pitagóricos ainda intensifica estes conceitos dando suas contribuições também já um pouco diferenciadas, ampliando o horizonte. Eles dizem que a Amizade é: “um sentimento forte, não comum, que não se dá a todos ou não se recebe de todos, mas que liga apenas homens que tenham uma comunhão de sentimentos”. (HYPNOS: Da Amizade, São Paulo: EDUC; PAULUS; TRIOM, 1996; n. 22/2009; p.3).


Tendo explanado um pouco esse conceito na linha filosófica, entremos na linha teológica e outros conceitos básicos atuais.


Visando um conceito teológico, vejamos algumas narrações bastante importante nas sagradas Escrituras, que muitas vezes nos passam despercebidas e que falam sobre o conceito de uma Amizade verdadeira.


Citando a primeira delas, leiamos com atenção o capítulo 11º do Evangelho segundo São João, que narra a Amizade de Jesus com Marta, Maria e Lázaro, bem como a tristeza e choro de Jesus pela perda do seu amigo Lázaro o qual ele o ressuscitou da morte. “Havia um doente, Lázaro, de Betânia, povoado de Maria e de sua irmã Marta. [...]. As duas irmãs mandaram, então, dizer a Jesus: “Senhor, aquele que amas está doente”. [...]. Ora, Jesus amava Marta e sua irmã e Lázaro. [...]. “Nosso amigo Lázaro dorme, mas vou despertá-lo”. [...]. “Jesus, porém, falava de sua morte e eles julgaram que falasse do repouso do sono. Então, Jesus lhes falou claramente: “Lázaro morreu. Por vossa causa alegro-me de não ter estado lá, para que creiais. Mas vamos para junto dele!”. Ao chegar, Jesus encontrou Lázaro já sepultado havia quatro dias. [...]. “Onde o colocastes?” responderam-lhe: “Senhor, vem e vê!” Jesus chorou. Diziam, então os judeus “vede como ele o amava!” (Cf. Jo 11,1-44). Essa é uma passagem muito importante diante do conceito de Amizade, pois vemos Jesus se comover por três vezes diante da morte do seu amigo.


Outra passagem muito bela é aquela ocorrida durante a prisão de Jesus quando o Senhor sabendo bem quem era Judas Iscariotes, e os planos que este possuía, ainda o chama de Amigo. Assim nos narra o Evangelista São Mateus: “E enquanto ainda falava, eis que veio judas, um dos Doze acompanhado de grande multidão com espadas e paus, da parte dos chefes dos sacerdotes e dos anciãos do povo. Seu traidor dera-lhes um sinal, dizendo: “É aquele que eu beijar; prendei-o”. E logo, aproximando de Jesus, disse: “Salve Rabi!” e o beijou. Jesus respondeu-lhe: Amigo, para que estás aqui?” Então, avançando, deitaram a mão em Jesus e o prenderam.” (Cf. Mt 26,47-50; Mc 14,43-52; Lc 22,47-53; Jo 18,2-11). O interessante é que só São Mateus narra que Jesus chamou o seu traidor Judas, de amigo, ou seja, mostrando assim um conceito de Amor e verdadeira Amizade para com ele e os seus discípulos. Portanto, essa pergunta: Amigo, para que estás aqui? tem um grande significado teológico e  também filosófico. Jesus amava incondicionalmente os seus Amigos. Por isso, não pode haver dúvidas e desconfianças entre os amigos, pois, se tens dúvidas de uma pessoa, não és amigo dela. Esse é mais um conceito da Amizade que poucos se atentam. Na Amizade verdadeira não há lugar para dúvidas em relação a pessoa do outro. Ou és amigo ou não és.


Outra bela forma de Amizade verdadeira podemos ver entre o jovem Davi e Jônatas filho primogênito do rei Saul. “Aconteceu que terminado ele de falar com Saul, Jônatas apegou-se a Davi. E Jônatas começou a amá-lo como a si mesmo...” (1Sm 18,1-5). Em outra passagem Jônatas ajuda Davi a livrar-se de seu pai Saul que intentava matá-lo. “Então Davi fugiu das celas de Ramá e veio ter com Jônatas, dizendo: “Que fiz eu? Qual a minha falta? Que crime cometi contra teu pai, para que procure tirar-me a vida?” ...” (Cf. 1Sm 20,1-42). Termos verdadeiros amigos é um bálsamo para a vida. Porque uma Amizade verdadeira não tem preço. Pois, um bom Amigo é um tesouro incalculável. Outra coisa que eu sempre digo aos meus conhecidos é que: quem tem muitos amigos não tem nenhum, porque com tantos, não saberão distinguir o que seja uma Amizade verdadeira.


O belo livro do Eclesiástico no seu capítulo sexto, versículos cinco a dezessete faz um belo elogio a Amizade. Amigo fiel é um poderoso refúgio, quem o descobriu, descobriu um tesouro.” (Eclo 6, 14).


Como foi dito anteriormente que numa Amizade não poderá haver dúvidas, desconfianças e enganações, portanto, ficará mais fácil saber quem são seus verdadeiros Amigos. Se você ama verdadeiramente uma pessoa, jamais minta para ela, pois a mentira é a pior forma de traição que você poderá cometer contra quem ama. Ser sincero e verdadeiro é uma forma de amor e nos torna dignos, fortes e credíveis a todos. Isso servirá para ambas as partes.


O Sábio filósofo Platão (*428/427 a.C +348/347 a.C) nos diz: Onde não há igualdade, a Amizade não perdura.” No conceito do filósofo, eu busco no Amigo a semelhança perdurando assim a Amizade. Ambos se completam.


O escritor Gerardo Castillo diz no seu livro: Educar para a amizade, que: “Estamos assistindo, em conseqüência, a um processo de desvalorização do conceito de amizade. As pessoas pensam que, para terem muitos amigos, têm que dar razão aos outros sistematicamente, usar de bajulação e incentivar a vaidade alheia.” (CASTILLO, 1999; p.7). Isso é o que mais vemos hoje nas redes sociais. Eu sou seu amigo enquanto falo tudo o que você quer ouvir, mas quando ouvem algo que deveriam ouvir, logo a amizade acaba. Não quero dizer aqui que devemos atirar aquilo que achamos ser a verdade, para todos os lados. Não. Devemos estar atentos às situações de cada indivíduo e outros aspectos sociais convenientes para o esclarecimento do assunto que será tratado entre ambos. Como escrevi em outro texto, devemos ter muito cuidado com a nossa língua, porque isso poderá acarretar muitos problemas sociais.


Entre os verdadeiros Amigos há uma forma de atenção diferenciada que supera qualquer barreira. Se não existir esse sentimento atencioso, creia que aí não existe a verdadeira Amizade, o que pode existir é um coleguismo, companheirismo ou são apenas conhecidos que se dão muito bem nas coisas comuns da vida; o que é diferente da Amizade verdadeira. Duas frases de marketing que me chamaram bastante a atenção a esse respeito, diz: Tem gente que gosta da sua utilidade, não de você. Quando você deixa de ser útil não serve mais.” Aqui podemos perceber claramente aquele conceito aristotélico da amizade de utilidade. A segunda frase nos diz:Alguns falam com você quando sobra um tempo e alguns arrumam tempo para falar com você. Aprenda a diferença!”  (@marketingdeninja). Pois bem, quem fala que não tem tempo e passa semanas, meses sem uma comunicação com aqueles que chamam de amigos, isso é apenas uma desculpa. Não se enganem! Quando são verdadeiros Amigos, sempre se arruma um tempinho para eles. Se isso não acontece com aquele que diz ser teu amigo, é porque você não é tão importante assim para ele. Saiba disso. Eu, mesmo, com os muitos trabalhos que possuo, arrumo sempre um tempinho para os meus amigos. Mas, ao perceber que alguns não dão valor a nossa amizade, ou não desejam criar vínculo, então eu permaneço na minha e me comunico apenas com aqueles que se comunicam comigo. Creio que cada um já traçou a sua forma de comunicação o que é bastante importante.


Muito importante para se evitar chateações ou até mesmo desavenças numa relação entre pessoas, sabermos o que é ser colegas, companheiros, o que é diferente de uma Amizade verdadeira.


Os colegas, mesmo estando sempre perto de você, eles se distanciam e não criam vínculos com você, pois eles te procuram quando não estão bem, você muitas vezes o ajuda mais depois ele esquece da sua ação; desaparece e aparece conforme os seus interesses e muitas vezes não quer saber de você. Claro que isso não é via de regra para todos. Lembremos que aqui estamos falando sobre a Amizade verdadeira.


Quanto aos amigos, é aquele que te dá a mão em todos os momentos da vida, principalmente nas horas mais difíceis. Pois são nestes momentos de dificuldades que você saberá com certeza quem são os seus verdadeiros Amigos. Como diz o provérbio, os homens não podem conhecer-se mutuamente enquanto não houverem “provado sal juntos. (ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, VIII n. 3. 25). No livro de Jó há uma bela passagem que mostra muito bem o que é ser Amigo verdadeiro. No sofrimento de Jó os seus amigos fica com ele na sua grande aflição. Três amigos de Jó – Elifaz de Temã, Badad de Suás e Sofar de Naamat – ao inteirar-se da desgraça que havia sofrido, partiram de sua terra e reuniram-se para ir compartilhar sua dor e consolá-lo.... (Cf. 2,11-13).  Isso sim é ser verdadeiros Amigos. Quando tudo vem contra você, eles cuidam, amparam, lhe seguram para você não permanecer prostrado no sofrimento e cuidam do seu coração. O Amigo verdadeiro é aquele que entende e sabe o verdadeiro significado do amor. Por isso dizemos ter ele, um preço incalculável. “Quem o encontra, encontra um tesouro.” (Eclo 6, 14).


Finalizo este pequeno texto com uma bela frase do grande filósofo Aristóteles sobre a Amizade verdadeira. Assim ele nos diz: “Acresce que uma amizade dessa espécie (verdadeira) exige tempo e familiaridade. Como diz o provérbio, os homens não podem conhecer-se mutuamente enquanto não houverem “provado sal juntos” e tampouco podem aceitar um ao outro como amigos enquanto cada um não parecer estimável ao outro e este não depositar confiança nele. (...); porque o desejo da amizade pode surgir depressa, mas a amizade não.” (ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco).




REFERÊNCIAS


ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco. Tradução de L. Vallandro e G. Bornheim, São Paulo: Abril Cultural, 1973.


BÍBLIA DE JERUSALÉM. Nova edição, revista e ampliada. São Paulo: Paulus, 2002.


CASTILLO, Gerardo. Educar para a amizade: um manual para pais e professores; tradução de Roberto Vidal da Silva Martins. - São Paulo: Quadrante, 1999.


DOM GILVAN FRANCISCO DOS SANTOS, OSB. Amizade e Felicidade segundo Aristóteles. Trabalho monográfico apresentado ao Curso de Licenciatura em Filosofia, da Faculdade São Bento da Bahia, como requisito parcial para obtenção do título de Licenciatura em Filosofia. Orientador: Prof. Pe. Jose de Maria Vazquez – Salvador – Bahia, 2011.


HYPNOS: Da Amizade, revista do centro de estudos da Antiguidade Greco-Romano (CEAG). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Ano I, n. 1(1996) São Paulo: EDUC; PAULUS; TRIOM, 1996; n.22/2009; p.3.


Ut In Omnibus Glorificetur Deus (RB 57, 9)